Uma súbita incompreensão

A Alambique e a Letra Livre trouxeram de novo Frantz Fanon (1925-1961), psiquiatra, revolucionário e "homem que interroga"*, para o circuito editorial português. A primeira com o documentário "A Respeito da Violência" de Göran Olsson e a segunda com o livro "Os Condenados da Terra" cuja tradução (revista) é a que António Massano fez para a Ulmeiro nos anos 80. Inocência Mata assina o prefácio desta nova edição e o "Testemunho de um militante angolano" prestado por Mário Pinto de Andrade serve de epílogo.
Sartre escreveu o prefácio para o original de 1961, o qual viria a ganhar enorme popularidade e autonomia. Seis anos depois, perante o apoio do filósofo francês ao sionismo, seria oficialmente desassociado do livro por ordem da mulher de Fanon. Nesse seu texto interpelativo, não só encontramos a apologia do pensamento de Fanon como também da violência: "Talvez, então, encurralados contra a parede, desenfreareis por fim essa violência nova suscitada pelos velhos crimes acumulados. Mas isso, como costuma dizer-se, é outra história. A história do homem. Estou certo de que já se aproxima o momento em que nos uniremos a quem a está fazendo", conclui Sartre. Para Inocência Mata, esta simultaneidade no prefácio d'"Os Condenados da Terra" condicionou a percepção global sobre Fanon que a partir daí se desenvolveu, ampliada por uma comunicação social desinformada, como se de "um racista que apelava ao ódio" se tratasse. Segundo a investigadora e professora da Faculdade de Letras de Lisboa, o prefácio de Sartre pode "...ler-se como uma interpretação existencialista do texto de Fanon, revestida de uma justificação de violência que Frantz Fanon alegadamente defende, como se de uma violência redentora se tratasse, chegando a pontuar todas as manifestações culturais dos africanos como sinais de revolta". Acrescenta que "David Macey, um dos biógrafos de Frantz Fanon e um dos primeiros estudiosos da sua obra a considerá-lo um dos percursores do que se entenderia, 20 anos depois, por "estudos pós-coloniais", afirma ser Fanon muito mais do que um "apóstolo da violência" ou um "santo patrono" dos Panteras Negras, como dele disse o "pantera" Stokely Carmichael. Na verdade, não é temerário pensar que esse estatuto foi exponenciado pelo citado prefácio de Jean-Paul Sartre".
Adoptando um ponto de vista idêntico sobre o prejuízo de Sartre para Fanon, em entrevista à Vice, Göran Olsson disse: "Não gostei. Parece ter mal entendidos. Como se o tivesse escrito demasiado rápido, numa tarde. Convidei a Gayatri Spivak para fazer o meu prefácio. Nele, ela critica Sartre, Fanon e o filme. Não é muito habitual um filme fazer auto-crítica mas isso ajuda os espectadores a ler nas entrelinhas." Embora breve e de parca qualidade de imagem (sobretudo se pensarmos que se tratam das únicas imagens que tiveram de ser filmadas especificamente para o documentário, todas as outras são de arquivo) este prefácio de Spivak a que Olsson se refere providencia, de facto, uma excelente introdução para a compreensão das "Nove Cenas da Auto-Defesa Anti-Imperialistas" que o realizador sueco propõe em "A Respeito da Violência", cenas essas enquadradas e acompanhadas por trechos retirados da obra de Fanon lidos em voz-off por Lauryn Hill (a imagem a p&b abaixo pertence ao filme, talvez uma das partes que provoca em nós maior estupefacção).
Em Paris, no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros (1956), Fanon fez uma intervenção a que chamou "Racismo e Cultura" e na qual defende que o valor normativo que certas culturas reclamam para si só pode ser correctamente entendido se à luz da hierarquização sistematizada que caracteriza os sistemas colonialistas e imperialistas. Assim, se o estabelecimento de hierarquias advém da capacidade de uns oprimirem outros, então racismo e cultura devem ser entendidos numa lógica de reciprocidade. O racismo não só "avoluma e desfigura o rosto da cultura que o pratica" como é ele próprio um aspecto cultural que uns têm e outros não.
"Como se comporta um povo que oprime" quando "o objecto do racismo já não é o homem particular, mas uma certa forma de existir"? Por vias do estrangulamento das "modalidades de existência" e da humilhação dos "seus sistemas de referência" derivando em choque, alienação e subalternidade. Se a cultura dominada desponta entre os dominadores é por simplificação (como na ideia de exótico); mas se, por vias do trauma, desperta entre os autóctones é na forma ambígua de "cultura da cultura" (ao contrário do que sucede com os tradicionalistas, ou seja, com os que conseguem resistir à alienação). Esse "clamar" da cultura própria é frequentemente sobrevalorizado (pois "que se assemelha psicologicamente ao desejo de se fazer perdoar") e acarreta uma tomada de consciência que faz com que os subjugados procurem lutar contra todos os tipos de domínio e exploração. A isso, os opressores respondem com ideias de assimilação, integração e comunidade. No entanto, ao contrário do que verificamos nas lutas de conquista, nestas lutas pela libertação não vemos "... aparecer o racismo. (...) Mesmo no decurso de períodos agudos de luta armada insurreccional, nunca se assiste a uma tomada maciça de justificações biológicas. (...) No decurso da luta, a nação dominadora tenta reeditar argumentos racistas, mas a elaboração do racismo revela-se cada vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo, de atitudes primitivas diante a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra já não responde (...) O ocupante já não compreende. O fim do racismo começa com uma súbita incompreensão."

*"Ó meu corpo, faz de mim sempre um homem que interroga!" - última prece de Fanon no livro "Pele Negra, Máscaras Brancas" (1952)

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