Bella maniera

Bronzino, Alegoria com Vénus e Cupido, c. 1545
Sob a égide da liberdade e independência na arte, o maneirismo e o modernismo caracterizaram-se pela ruptura com os cânones naturalistas vigentes. Separados por 400 anos - o maneirismo atravessando grande parte do séc. XVI e o modernismo ocupando o fim do séc. XIX e o princípio do séc. XX - encontramos em ambos os períodos artísticos um novo pensamento estético que procurava expressar-se contra os sistemas ordenados e regularizados que os precediam. No livro "O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses" (INCM, 1983), Vítor Serrão resume as semelhanças entre os dois momentos apontando a partilha de "um quadro ideológico e cultural informado por dúvidas indissolúveis, por uma angústia existencial, pela agitada tensão e a extrema ambiguidade dos tempos vividos, que se afirma em situações concretas da realidade contemporânea em tempo de crise". Por este motivo se torna interessante notar que a força do descomprometimento estético do cinquecento e o seu reconhecimento enquanto estilo só aconteceria há pouco mais de cem anos atrás, ou seja, quando o ocidente se encontrava em pleno modernismo. Citado por Serrão, Arnold Hauser explica esta coincidência referindo que "só uma época que tivesse experimentado a tensão entre a forma e o conteúdo, entre a beleza e a expressão, como seu próprio problema vital podia prestar justiça ao maneirismo e verificar a verdadeira natureza da sua individualidade em contraste tanto com o renascimento como com o barroco"
Do mesmo modo que a descoberta das diferentes instâncias da mente revelaria, no princípio do século passado, um ser humano novo, a astronomia deu às décadas pós-renascentistas uma nova visão do mundo na qual o homem deixava de ser o centro do universo. Com o fim dos mitos veio o fim das certezas e um novo paradigma impulsionado pela contradição e descrença. A arte não poderia senão reflectir essa tensão e cepticismo. O momento exigia que tudo fosse questionado, sobretudo a lógica, a ordem e a razão. No maneirismo liberal como no modernismo autónomo, os artistas sentiram necessidade de repensar e abandonar valores como o racionalismo, o humanismo e o classicismo em prol do desequilíbrio, do misticismo e da inovação. Os críticos denunciavam os critérios pessoais dos artistas que consideravam sinónimo de decadência formal, limitação técnica e simples capricho. Mas seria essa individualidade e sentido autoral a permitir o alargamento das artes do séc. XVI a tendências anti-realistas e a temas como o dramático, o grotesco e o fantástico que concorreriam para fazer do maneirismo um dos mais agitados, criativos e revolucionários estilos da história da Europa.
Francisco de Holanda, O Caos e a Criação da Luz, 1545-47
Em Portugal, o espírito maneirista terá chegado mais tarde mas plantou entre os pintores o desejo de ver revisto o seu estatuto social. Os meios contra-reformistas dominavam a Península Ibérica estrangulando a verve e limitando fortemente a liberdade criativa dos artistas. Além desse contexto repressivo, estava estabelecido desde a criação da Casa dos Vinte e Quatro (1383) que a pintura era um ofício mecânico sem a nobreza e liberdade atribuídas, por exemplo, à poesia. Com todas as obrigações mesteirais que daí decorriam, os casos de pintores que se tinham conseguido desvincular desse estatuto contavam-se pelos dedos das mãos. O Regimento da classe dos pintores de 1572 insiste no entendimento da profissão enquanto ofício mecânico despoletando sentimentos de revolta entre alguns pintores a óleo portugueses que em, 1576, solicitam a D. Sebastião a sua exclusão da Bandeira de S. Jorge, corporação ao abrigo da qual se encontravam, a par dos barbeiros ou ferreiros, mas também dos pintores de têmpera ou fresco e de dourado ou estofado. A distinção entre as três categorias de pintores era pertinente e apoiava-se em diferentes graus de mestria, perícia e aprendizagem que todos reconheciam (o que não impediu que os pintores a têmpera reclamassem para si os mesmos privilégios que os a óleo viriam a adquirir, embora só excepcional e individualmente tenham sido bem sucedidos nisso). No regimento de 1572 podemos ler que, para passar no exame de pintor a óleo, o pintor deveria levar uma tábua de quatro ou cinco palmos em quadro e em casa do Juiz pintará a imagem que ele lhe disser de modo que na dita tábua haja marcenaria, paisagem e algumas minudências para que em tudo se veja sua suficiência. o que de têmpera ou fresco quiser usar fará em parede o fresco. E em pano ou tábua a têmpera figura ou lavor romano ou grotesco querendo usar de tudo. Por fim, do dourador ou estofador se espera o que somente quiser usar por mais não poder alcançar... Talvez por receio de uma propagação à classe, as reivindicações do colectivo de 1576 são negadas. Mas a 7 de Fevereiro de 1612, numa procuração destinada à Câmara Municipal de Lisboa, os pintores de imaginária de óleo voltam a reclamar a sua liberdade conseguindo, então, alcançar naquele círculo o foro de nobreza para a sua arte e os privilégios de classe, acontecimento que se viria a repetir no Porto em 1621. Porém, seria preciso avançar até 1689 e ao reinado de D. Pedro II para a pintura a óleo ser legalmente considerada uma arte liberal oposta às mecânicas e oficinais. De modo idêntico e simultâneo, o mesmo acórdão consagrava a escultura à independência das designações mesteirais.

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