O artista deslocado

Há muito tempo que a obra de Richard Prince gera controvérsia. A sua última série de refotografias (ou, melhor dizendo, #regrams) intitulada "New Portraits", volta a lançar a discussão que tantas vezes redunda na pergunta que serve de mote ao artigo do Guardian: "Isto é arte?" Ao contrário do que afirma a jornalista que assina o texto, a questão não é tão antiga quanto a própria arte, presunção essa que contraria a ideia de arte enquanto expressão humana livre. Porém, é difícil não concordar que a refotografia per se (neste caso em concreto, comentário de uma imagem do Instagram, apropriação por print screen e ampliação por impressão em jacto de tinta sobre tela) é, aos olhos de hoje, um gesto artístico vazio de manifesta acomodação que provoca desconforto entre os demais. Se já é embaraçoso o desajeito no modo como Prince usa as redes sociais, agiganta-se o constrangimento perante os valores na ordem dos cem mil euros que cada um dos seus "New Portraits" tem atingido.
Apresentada em séries e radicada na nova iorquina geração do New Image, a consagração da obra de Prince deveu muito ao fetichismo do objecto artístico que a economia desenfreada da década 80 produziu, cenário este que também tinha a cidade de Nova Iorque como centro nevrálgico. Conforme notou Peter Nagy num debate com artistas em 1986, conhecido por "Da Crítica à Cumplicidade", "Parece-me (e talvez isto se deva ao enorme e repentino sucesso que muitas destas obras alcançam) que duas dialécticas diferentes operam individualmente sobre as obras: por um lado, a obra apela a uma audiência composta por artistas e intelectuais, por outro, apela a uma audiência composta por coleccionadores e mercadores." A sociedade de consumo e do espectáculo dominavam, então, o Ocidente em geral e a arte em particular. Consciente da dissolução das diferenças entre realidade documentada e ficção, o trabalho de Prince inscrevia-se na deslocação de valores e significados entre cultura low e high, uma espécie de transacção imagética entre consumidor (público) e produtor (artista) para atestar um mercado pleno de poder de compra.
No texto do ano passado que acompanha a exposição de "New Portraits", Prince justifica assim o seu método apropriacionista por comparação à fotografia: "Sinto-me mais confortável no meu quarto a folhear a Easyrider e a ser invadido por imagens de "namoradas" que estão ali mesmo, na página. Página atrás de página. Olhar. Imaginar. Antecipar. Desejar. O que estará na página seguinte? Irei encontrar uma namorada de quem goste mesmo? É essa a minha relação com o que aí está." Depreendendo que o ciberespaço resulta da disseminação da técnica por vias da deslocação e da intraunião, que papel poderão os #regrams deslocados de Prince desempenhar? Será mesmo verdade que o voyeurismo e a vanitas, patentes na postura do artista e em muitas das redes sociais, adquirem um fascínio ou aborrecimento maior se meramente transferidas do dispositivo online para o dispositivo do espaço de exposição?
Os comentários que acrescentou a cada imagem nada informam ou aprofundam. O artista explica-se: "Utilizo a linguagem que oiço num anúncio. Linguagem inferior. Funciona. Parece significar qualquer coisa. O que é que significa? Não sei. Tem mesmo que significar qualquer coisa?" Arredada a dimensão política (pois nada se faz para diminuir a obscuridade), encontraremos nós alguma dimensão estética nesta série de Prince que não pareça boçal e comezinha? Muito embora se esforce para dar espessura aos seus retratos detendo-se nas qualidades técnicas da cor impressa, o próprio acaba por concluir: "Nem tinha a certeza se se pareciam, sequer, com arte. E essa era a melhor parte. Não parecerem arte. (...) Não tenho qualquer responsabilidade. Elas [as imagens] sim." A quem serve esta premissa num momento em que os mercados que legitimaram Prince, infundidos de consumo e capital, colapsam sem retorno à vista? Quem subscreve a hiperautoria do artista sobre a autoria do utilizador quando o sistema que o ergueu cai e o próprio artista se desresponsabiliza?
Como um fantasma empossado pelo status, às costas do exausto mercado da arte, Prince chega às redes sociais tarde e a más horas. A arte não morreu mas a sua já não apresenta sinais de vida.

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